Os sinos nunca tocam neste lado do monte (4)
- Estão todos presentes? Muito bem, vou começar a ler o testamento: "Eu, Harlan Swimm, na plena posse das..."
O homem continuou a ler, mas eu não o ouvia. Pobre Harlan. Atirara-se para a multidão, implorando que comessem a sua carne. Não quisera ser reciclado, resolvera tornar a sua morte útil: um pouco da perna direita para ti, a minha cabeça para aquele, o meu braço para este aqui...
Tinham-no despedaçado em segundos e a carnificina continuara até a intervenção policial causar algumas centenas de mortos e 'acalmar' a multidão.
- "... e a Paul Stephenson deixo um exemplar dos poemas de Alexeiev Smithreens e outro do 'Livro dos Mortos' de Eric Landenburg. Espero que os leias, Paul. Acabo aqui. Adeus a todos."
- Ninguém diria ser ele o próximo... – os grandes olhos castanhos de Martie estavam inchados pelo choro.
Pouco falámos uns com os outros. Fomos a casa de Harlan com o executor testamentário e cada um de nós levou as coisas que ele nos tinha legado. Fui para casa. Comprei algumas garrafas na loja do prédio e quando cheguei ao apartamento afundei-me na poltrona com uma garrafa e um copo ao lado. Comecei a passar o tempo.
Engraçado! Após três copos cheios daquela mistela já me devia sentir tonto, no entanto...! O meu coração deu um salto. Olhei para a garrafa e ela estava praticamente cheia. Com três copos bebidos devia estar a meio! Acontecera novamente.
Continuei a beber, mas agora o nível da garrafa baixava e o meu espírito ficou mais e mais embotado, até que adormeci.
Além da cabeça, doíam-me as costas horrivelmente devido à noite passada na poltrona. Liguei o televisor.
"... e outros actos de canibalismo ocorreram, devidos também à ruptura da rede alimentar. Na Amazónia Interior a carga da..."
Desliguei o aparelho. Agora estava mesmo assustado. Olhei para o relógio: dia 7 – Terça-Feira. Pelo menos o dia estava certo, mas aquele tumulto na Amazónia já tinha acontecido quase um mês antes, tinha a certeza!
Um impulso súbito levou-me a abrir o livro de poemas. Tinha uma dedicatória de Harlan, bem estranha: "Para ti, Paul, que talvez aguentes a Verdade..."
Abri-o na página 147, onde se encontrava a 'Ode a uma probabilidade reduzida'. Li-o sabendo que palavras iria encontrar e depois voltei a folha. Na página da esquerda havia uma ilustração do poema seguinte, uma espiral a ser cortada por uma tesoura. Na página da direita estava o poema. Reparei que todo ele estava sublinhado. Li:
"Título: Tempo atrás de Tempo
Corpo: É este o tempo que uma vez negámos?
Gastámos o tempo em vãs teorias
De como o tempo se esvai.
Flutuamos agora no limbo
Das nossas ideias proscritas, malditas.
Tempo atrás de Tempo virá
Dizíamos.
Mas gastámos o tempo a pensar
Em coisas que não serão,
E agora
Tempo atrás de Tempo
Não há."
Reli-o uma vez e outra, sem compreender a razão porque Harlan o sublinhara. Pousei o livro e fui lavar-me.
Foi no duche que a verdade me apanhou! Fechei a água e fiquei ali, molhado e nu, exposto à horrível verdade que antes o meu espírito não quisera ver. O tempo era a solução! Vesti-me e comi, depois telefonei a todos. Déjane pareceu surpreendida no visor do telefone mas eu não lhe forneci mais explicações.
Três horas depois estávamos reunidos no meu apartamento acanhado. Todos se interrogavam sobre o porquê daquela reunião apressada.
Distribuí bebidas por todos e depois pedi silêncio.
- Por favor. Silêncio.
Fui encarando cada um enquanto pronunciava os seus nomes:
- Justin,
Magda,
Brett,
Isabelle,
Ernst,
Martie,
Kaspar,
Rijkaard,
e Déjane.
Acabei de descobrir o que Harlan queria que eu descobrisse, e receio por mim e
por vós.
Digo-vos tudo numa frase:
Gastámos o tempo! Não o meu e o vosso, mas o de todos! Mais tarde ou mais
cedo ele acabará para todos nós. Não estou a falar da morte, estou a falar de algo
mais radical.
As caras estupefactas mostravam descrença.
- Não vos têm acontecido pequenas coisas inexplicáveis, repetições de coisas acontecidas?
Alguns assentiram com a cabeça.
- Então pensem, pensem um pouco! Esta é uma festa de despedida. De despedida da vida, que mais tarde ou mais cedo nos abandonará. Divirtam-se muito, porque pode ser a última vez que o fazem...
A festa durou até tarde. Arrumou tudo nos seus lugares. Uma casa desarrumada tem ainda menos espaço, embora isso pouco lhe interessasse agora.
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
Abriu a gaveta e colocou o explosor em cima da secretária. Foi buscar papel e escreveu duas curtas missivas, uma para todos, outra para Déjane.
Levou a arma à cabeça e hesitou um pouco. Premiu o gatilho e...
(repetir para sempre, até se acabar o tempo)
FIM
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